Quando a Justiça se Cala: Poder, Consentimento e o Corpo-Dado no Brasil
- Black Brazil Art
- há 4 dias
- 5 min de leitura

Em algum momento, talvez sem perceber, fomos levados a dizer sim.
Sim ao sistema que nos promete justiça, mas entrega silêncio.
Sim ao escaneamento do nosso CPF em troca de alguns centavos de desconto.
Sim ao compartilhamento compulsório dos nossos dados, à vigilância disfarçada de conveniência, à justiça que serve a quem já tem. Mas quando foi que concordamos? E o que, exatamente, nos disseram que estávamos assinando?
A história do poder judiciário no Brasil é também a história de um país que nunca se preocupou em garantir justiça para todos — apenas para alguns. Um país onde a legalidade muitas vezes serve para justificar o injustificável, onde a ética é descartável diante da manutenção das estruturas de poder.
E nesse mesmo país, nossos corpos se tornaram dados. Nossas escolhas, nossos remédios, nossos hábitos de consumo — tudo convertido em mercadoria, sem que tenhamos sequer o direito de entender o que estamos entregando. Tudo isso sob o olhar cúmplice de um judiciário que, quando não é omisso, é conivente.
Este texto é um convite à recusa. Uma tentativa de rastrear quando fomos obrigados a ceder. De entender como o consentimento foi manipulado. E, sobretudo, de perguntar: o que é justiça, quando ela não está ao lado da ética?
#OPODERJUDICIARIO: GUARDIÃO DE QUEM?
O Judiciário brasileiro nunca foi neutro. Desde sua origem, carrega marcas profundas de um sistema construído para manter privilégios e garantir a ordem — mas não qualquer ordem: a ordem dos donos da terra, dos donos da lei, dos donos do tempo. Uma instituição que, por muito tempo, sequer se preocupou em disfarçar sua função de controle social sobre os corpos negros, pobres, dissidentes, de mulheres.
Na história do país, poucos foram os momentos em que a justiça caminhou ao lado da equidade (até nem me lembro se caminhou). Durante o Império, o acesso à justiça era monopólio dos letrados, quase sempre brancos e proprietários. Na República, com raras exceções, os tribunais continuaram a operar como trincheiras da elite — seja para garantir a impunidade de crimes de colarinho branco, seja para criminalizar movimentos sociais e proteger interesses privados.
A ditadura civil-militar escancarou o papel cúmplice do Judiciário: silencioso diante da tortura, das mortes, das prisões arbitrárias (até ganhamos um Oscar por isso). E mesmo na chamada “Nova República”, a justiça brasileira tem mostrado eficiência seletiva. Não é que ela seja ineficiente — ela apenas funciona melhor quando é para manter a desigualdade como norma.
Os processos se arrastam por décadas quando se trata de reparar um dano à população negra, indígena, periférica (e agora, acreditem, dos aposentados). Mas avançam com rapidez surpreendente quando é preciso despejar famílias, criminalizar protestos ou blindar grandes empresas (quem se lembra de Brumadinho?).
A pergunta que se impõe não é apenas “por que a justiça é lenta?”, mas “para quem ela é veloz?”. O que se revela, então, não é uma falha — é um projeto.
#CORPODADO: QUEM LUCRA COM A NOSSA EXPOSIÇÃO?
A cada compra, uma escolha. A cada escolha, uma entrega. Uma farmácia pede seu CPF para “acumular pontos”. Um supermercado oferece um “desconto exclusivo” se você se cadastrar no app. Um serviço de transporte solicita acesso à sua localização, seus contatos, seu histórico de navegação. Tudo parece opcional, mas na prática, não é.
O consentimento virou moeda falsa. Não há liberdade real quando a escolha é entre ceder seus dados ou ser excluído dos serviços essenciais. Não há privacidade possível quando o próprio Estado se mostra ineficiente — ou cúmplice — na proteção dessas informações.
O corpo, já expropriado de tantos direitos, agora se vê convertido em dado. Nossos hábitos alimentares, nossas doenças, nossos deslocamentos, nossas preferências — tudo se torna um ativo valioso no mercado da vigilância. E o Judiciário, que deveria ser o guardião da nossa integridade, permanece tímido. Aprovamos a LGPD como quem cola um esparadrapo num vazamento de represa (e olha novamente o rombo no INSS).
Enquanto isso, as grandes corporações seguem extraindo, vendendo, trocando e manipulando nossas informações como se fossem commodities. E mais uma vez, os mais vulneráveis são os que mais têm a perder — aqueles que não podem se dar ao luxo de “optar por não compartilhar”.
Somos pressionados a consentir como quem assina um contrato que não entende, em uma língua que não é sua. E quando algo dá errado, a justiça não vem. Ela não escuta, não responde, não protege. O silêncio institucional é mais alto que os alertas de privacidade.
#ÉTICAEMDISPUTA: O QUE É ÉTICO, O QUE É LEGAL?
Nem tudo que é legal é justo. E nem tudo que é justo encontra abrigo na lei.
Essa dissociação, que deveria nos causar incômodo, foi sendo naturalizada. Acreditamos viver num Estado democrático de direito, mas muitas vezes o que temos é um Estado burocrático de exceção — onde as leis operam não para garantir dignidade, mas para manter privilégios.
A legalidade virou escudo de quem tem poder. E a justiça, que deveria ser um instrumento coletivo, tornou-se um jogo técnico, hermético, distante da vida real. Quando uma empresa contamina um rio e continua operando, quando uma favela é violentamente invadida com aval judicial, quando decisões que afetam milhões são tomadas a portas fechadas (e muitas vezes à noite) — não estamos apenas diante de injustiças. Estamos diante de um sistema que desconsidera a ética como princípio.
E é aí que os corpos se tornam alvo. Corpos racializados, femininos, dissidentes, periféricos, indígenas. Corpos que não cabem nos moldes da lei feita para proteger os mesmos de sempre. Corpos que pedem justiça e recebem processos. Que clamam por reparação e recebem silêncio.
A ética, nesse cenário, vira desobediência.
Vira resistência contra leis que não nos representam.
Vira voz dissonante dentro de estruturas que preferem o conformismo.
Vira ação coletiva quando o sistema se mostra surdo.
Porque a pergunta que se impõe não é apenas "o que a lei diz?", mas "o que é certo fazer diante da injustiça legalizada?".
#EAGORA O QUE PRECISA MUDAR?
Não se trata apenas de reformar leis, trocar ministros ou investir em tecnologia. A mudança que precisamos é estrutural, sensível, profunda. Porque um Judiciário que não reconhece a humanidade de todos os corpos não precisa ser apenas “melhorado” — precisa ser refundado.
Queremos uma justiça que escute. Que fale em muitas línguas. Que entenda o tempo da favela, do campo, do negro, da mulher e do indígena, do território dissidente. Queremos uma justiça popular, construída com os pés no chão e os olhos abertos — não em salas fechadas de condecoração e conivência.
É urgente democratizar o acesso ao direito. É urgente desfazer a lógica punitivista que só conhece a linguagem da repressão. É urgente garantir que a tecnologia sirva à vida — e não ao lucro, à vigilância, ao controle.
E mais que tudo, é preciso devolver à ética o lugar que a legalidade usurpou.
Ética que se forja no "somos todos iguais perante a lei" nos tribunais.
Ética que reconhece que justiça não é neutralidade — é posicionamento diante daquilo que não funciona e precisa ser reformulado.
Talvez não tenhamos todas as respostas agora. Mas já sabemos o que não aceitamos mais: Não aceitamos leis que matam lentamente.
Não aceitamos o silêncio que legitima.
Não aceitamos consentir com a própria exposição.
Nos cabe agora o gesto radical de imaginar outras formas de justiça.
Mais vivas.
Mais coletivas.
Mais humanas.
Black Brazil Art
Kommentare