O que artistas como Claudinei Roberto, Daniel Caballero e Denilson Baniwa têm para contar sobre isso. Por Laura Rago
Obra de Sidney Amaral na exposição “PretAtitude” (Foto: Divulgação)
O legado colonial tem ocupado o centro do debate nas práticas curatoriais, na produção artística e intelectual e na pesquisa crítica da arte. Evocar essa discussão é uma maneira de permanentemente recontextualizar uma série de problemas históricos e sociais que foram silenciados e reprimidos. Essa dimensão é essencial também para repensar e elaborar novas diretrizes institucionais que busquem ampliar a representatividade de gênero, raça, religião, orientação sexual e grupos minorizados historicamente.
Mais do que romper com os rótulos de uma visão única, é preciso indicar modos diferentes de ver e representar o mundo para assim desestabilizar processos ideológicos e estruturais, desconstruindo narrativas e pensamentos dominantes. Mudar o panorama artístico colonizado permite pensar também os limites das práticas e discursos ocidentais.
Nesta semana, o Beabá da Arte Contemporânea — série de vídeos do BIGORNA, na qual se explicam palavras e termos do atual vocabulário diário das artes — trouxe à baila a discussão do conceito de descentralização como um novo movimento da arte contemporânea, servindo como um megafone para as várias vozes, representatividades e pensamentos geopolíticos da arte. Dessa forma, a série reafirmou também a existência de um circuito artístico e cultural nas regiões periféricas, transcendendo o “gueto” do exótico e mostrando a arte como uma ferramenta de transformação e um veículo para a integração dos países.
Grosso modo, isso significa que existem várias histórias da arte, e não uma versão única, que reflete o eurocentrismo e as dinâmicas gerais do colonialismo. Se a arte contemporânea tem como objeto o contexto histórico presente, marcado por contradições sociais e violações de direitos humanos, seus agentes têm o dever de criar possibilidades e alternativas para reinventá-lo. Nesse processo, devem valer-se de posições radicais que redefinam o passado e o discurso hegemônico incorporado nas grandes narrativas da arte ocidental.
Para dar voz ao debate decolonial, expandindo os sentidos críticos de narrativas estabelecidas e apresentando estratégias criativas para confrontá-las, conversamos com Daniel Caballero, Claudinei Roberto e Denilson Baniwa, que vão além da cartografia oficial da arte e articulam outras abordagens neste cenário. Para efeito didático e imediato, vamos apresentar os entrevistados e seus respectivos trabalhos, trazendo alguns trechos do nosso bate-papo.
DANIEL CABALLERO
É artista e o autor do Cerrado Infinito (@cerradoinifinito), projeto-experimento de recriação de uma paisagem de cerrado dentro de uma área urbana pública. O artista paulistano falou, em entrevista, sobre a descolonização vegetal da paisagem e os desafios de implantar um cerrado no espaço urbano.
O Cerrado infinito propõe uma descolonização vegetal da paisagem, não apenas no discurso, mas em vias de fato, visto que mais de 90% da vegetação urbana é composta de espécies exóticas. Em São Paulo, não temos conhecimento da paisagem nativa, uma vez que a destruímos, afetando a raiz cultural do lugar. Toda essa amnésia e alienação me chamou a atenção, constatando o nosso processo de desenvolvimento colonizador e desenraizador, que se estabeleceu e se cristalizou no modo de pensar e agir das pessoas que moram aqui. O projeto cria uma nova estética, subvertendo plantas de terreno baldio, historicamente eliminadas, para as ressignificar como a vegetação originária da cidade de São Paulo, inaugurando, assim, um tipo de entendimento que sofistica a resistência para além da questão colonial, uma vez que reflete o modus operandi da nossa espécie frente à natureza (Daniel Caballero)
Daniel também tem outro projeto: o DESCOLONIZATION!, uma consequência da paisagem do Cerrado infinito, que faz parte do mesmo programa conceitual. A plataforma busca momentos de reflexão coletiva, ajudando a criar uma cultura e saberes do campo natural dentro do meio urbano. CLAUDINEI ROBERTO DA SILVA
Para além da revisão necessária da história da arte, fica claro que são necessárias também atitudes disruptivas dentro das instituições de arte e centros culturais, para assim não se repetir as mesmas fórmulas ocidentais e conservadoras. E, neste sentido, é preciso também que os agentes culturais entendam seu lugar e revejam esse espaço de poder dentro da estrutura da arte. “As instituições não serão decoloniais por promoverem exposições das assim chamadas minorias, elas o serão quando incorporarem esses grupos aos seus quadros de colaboradores”, comenta o artista plástico, professor e curador independente Claudinei Roberto da Silva (@claudinei_robertosilva).
Penso que, no estágio em que estamos, uma luta anticolonial e emancipatória precede um momento de descolonização, isto é, de remoção do entulho colonial e ereção de um ideário qualquer que depure o ambiente da ideologia colonialista (Claudinei Roberto)
Na exposição “Pretatitude – Emergência, Insurgência, Afirmação”, inaugurada em 2018 no Sesc Ribeirão Preto, que foi exibida em outros Sescs do interior de São Paulo e na capital, Claudinei Roberto, exercendo sua função de curador, traçou um recorte da produção afro-brasileira contemporânea a partir de trabalhos de artistas consagrados e emergentes. As produções trouxeram uma série de referências visuais e históricas, que permitiram discussões sobre identidade, memória, política do corpo negro e gênero, entre outras possibilidades e cruzamentos. Para Claudinei, as formas de opressão contra negros se mantêm institucionalmente, e a presença do negro na história da arte é negligenciada em favor de outras narrativas.
Não vale a pena pensar em ‘práticas curatoriais decoloniais’ se não houver autocrítica sobre a branquitude. Antes de desenvolver ações educativas decoloniais, devemos observar o quanto essas instituições estão comprometidas com modelos que elas pretendem refutar (Claudinei Roberto)
“Cunhatain antropofagia musical”, “Nheengaitã (Protagonismo e a nossa voz precisa ser escutada)”, e “Curumin Guardador de Memórias”, de Denilson Baniwa
DENILSON BANIWA
Denilson (@denilsonbaniwa) é artista e também indígena. Categorizar como artista indígena é uma maneira de limitar sua condição! Fica claro que muitas das figuras estereotipadas que construímos no nosso imaginário foram influenciadas pelas artes visuais, literatura, cinema etc. Por exemplo, para Denilson Baniwa, expoente da arte contemporânea brasileira, “o entendimento da sociedade sobre o que são as populações indígenas teve grande influência da arte. Tudo o que categoriza o Estado, a origem, o gênero ou a afiliação é limitador porque deixa claro para as pessoas que há uma necessidade de escuta a partir de onde ele vem, aonde ele pertence”.
Gosto de me posicionar a favor da decolonizacão, sem o s, como um símbolo para além do que é ser colônia. Isso significa entender o processo da colonização e aceitar que nós estamos infectados por esse sistema no nosso modo de viver –– uma existência contaminada pela colonização. Sabendo disso, e cientes de que não é possível voltar no tempo, é preciso pensar em medidas de prevenção de novos acidentes coloniais e em ações que destruam essas células no nosso corpo (Denilson Baniwa)
O trabalho de Denilson reflete sobre a vida indígena do povo Baniwa, da região do Rio Negro, e a vida na cidade. Suas produções trazem este tráfego entre-mundos, isto é, entre a cultura indígena e a arte contemporânea urbana. A mostra “Terra Brasilis: O Agro Não É Pop!” realizada em 2018 evidenciou essa ponte cortada pelo colonialismo. Ao abordar na mostra temas como tecnologia, política do agronegócio, desajustes climáticos e ambientais, Denilson cria conexões com estes dois mundos.
Se a arte ocidental foi importante para construir uma imagem estereotipada do que é ser indígena no Brasil, então existe uma possibilidade de que pela arte os indígenas consigam construir uma outra imagem ou desconstruir a imagem estereotipada (...). A presença (do artista e da arte indígena) tem de ser no sentido da colaboração, tem de ter uma preparação e discussão séria sobre essa inserção. O medo de me tornar um totem nesses lugares me faz refletir sobre toda essa construção que foi a arte brasileira e dos espaços de arte no Brasil (Denilson Baniwa)
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